As vezes a vida te pega de surpresa e alguns amores, bem, eles voltam.
Mas diferente dos amores que matam, ferem, doem e amargam, bem, alguns amores voltam para nos mostrar que o tempo não é tão linear quanto o Ocidente acha.
Ok, talvez eles voltem e sangrem um pouco, mas só porque te tiram todas as peles, toda a superfície de proteção. E o que resta, bem, as vezes são feridas que nunca cicatrizaram.
Se viajar para o passado é impossível mesmo considerando os buracos negros, bem, viver emoções já vividas é algo bastante real. Quando acontece, a gente entende que a memória não segue a concepção de tempo cronológico. Walter Benjamin já dizia que a memória não é estática e que articular historicamente o passado não significa descrever ou conhecer como ele foi de verdade, mas se apropriar de uma lembrança tal como ela cintila num instante1.
Esses dias eu estava jantando com as minhas filhas em casa, na sala, sentadas no chão (a mesa de jantar funciona como suporte de mochilas e bacias de roupa limpa a esperar de guardar) quando uma delas me perguntou onde estava a peixinha.
A peixinha é a gata de uma amiga minha que visitamos há dois meses e cuja lembrança surgiu na memória de uma das gêmeas somente nessa hora. Eu nunca tinha ouvido o nome da peixinha aqui em casa, mas alguma coisa aconteceu e conectou, naquele momento, a lembrança do dia em que se conheceram com o tempo presente. Recordar é um processo colaborativo que precisa se ancorar em algo. As vezes, a memória se ancora em amores e bem, eles voltam.
Alguns amores voltam para te prender a ideia de ser a menina, a que aprende, a que é guiada, a que é eternamente jovem. E bem, talvez não seja exatamente um problema reviver a ideia de quem fomos um dia. Sonhar de novo sonhos antigos tem gostinho de lanche do cícero na frente do colégio, biscoito passatempo vendo tv cruj ou pipoca pantera no ateliê de arquitetura da fau ufpa. O problema é que se eu comer isso tudo de novo na mesma quantidade de antes, talvez eu fique enjoada. O paladar não é o mesmo, troquei a coca-cola por café sem açúcar. Meu metabolismo também mudou (infelizmente). Os amores voltam, mas voltam diferentes.
O amor, assim como uma obra de arte chinesa, nunca permanece idêntico. É fluido, cheio de camadas, um palimpsesto sujeito a eterna impermanência. Para o Oriente, o valor da obra de arte não está na sua característica de ser única ou original, mas na sua capacidade de fazer parte de uma tradição e de contribuir no processo de fluxo contínuo de criação artística. Para eles, a matéria é uma extensão da natureza e por isso considerado algo vivo que interage com o artista e não apenas se submete a ele. Nesse sentido, uma vez que a obra de arte não é estática, a matéria também participa desse ciclo de transformação. Por isso os templos são reconstruídos a cada vinte anos.
Isso quer dizer que a obra de arte pode ser transformada e replicada - um pensamento muito, muito difícil na prática da vida ocidental pautada na matéria. E quando pensamos na arquitetura, esse pensamento assume aspectos complicados, especialmente quanto aos mecanismos de preservação cultural, mas os terreiros de candomblé tombados estão ai para mostrar que é possível. Afinal, nós arquitetos trabalhamos com o espaço, mas nos dirigimos ao tempo.
Esses dias eu estava conversando com a filha de uma amiga que está com aquelas dúvidas bem típicas do final do ensino médio: que curso escolher. Uma das possibilidades é arquitetura e, coitada de nós duas, eu quis ajudar. Acho que não consegui e ainda saí da conversa profundamente mexida. Não porque eu queria inserir minhas convicções nela (talvez quisesse também), mas porque sei que se eu me concentrar por uns minutos, posso me imaginar perfeitamente como uma garota de dezoito anos. Tem coisas que abrem fendas e nos levam para acessar memórias guardadas. Como se o tempo cronológico fosse uma piada e nossos corpos e rugas não fizessem o menor sentido de existir.
Quando eu era adolescente, circulava uma frase sobre encarar términos que dizia que quem vive de passado é museu. Primeiro que é mentira, eu vivo de passado, aliás nunca nem sai da minha infância e estou aqui criando dois seres humanos tendo em mente sempre o futuro delas. Diria até mais, só se anda para frente se vivermos de passado. Segundo que museu é uma coisa vivíssima e eu posso provar.
Assim como os amores que voltam e criam pontes, os museus são capazes de nos transportar para memórias já vividas da mesma maneira que conseguem nos conectar com sentimentos novos. Não se trata apenas de lembrar de coisas ou acessar informações, mas de criar novas memórias e desenvolver sentimentos que você nem sabia que tinha dentro de si. Um dos museus que mais me impactou na vida foi o Museu Andes 1972 e se você é meu amigo, provavelmente já ouviu essa história.
Era 2019 quando eu conheci o museu em Montevideo cujo objetivo é representar as quarenta e cinco pessoas que estavam a bordo do avião que caiu na cordilheira dos Andes, em 1972. Vocês podem assistir filmes e ler livros sobre esse acontecimento, mas para mim, nada foi tão simbólico quanto ficar três horas naquele espaço, chorando copiosamente e refletindo sobre solidariedade, resiliência, comunidade e criatividade. Até hoje fico arrepiada e lembro do espaço expográfico que continha a história do resgate e se eu vejo apenas um par de tênis de bebê eu já tenho vontade de chorar2.
A origem da ideia de museu mais famosa é aquela que diz que eram templos dedicados à musas, deusas da inspiração e filhas de Zeus e Mnemosine (a deusa da memória). Mas eu gosto mais do mito que aprendi estudando Marília Xavier Cury, uma museóloga brasileira. Com ela, recentemente eu conheci o Museu que é narrado na mitologia grega como o filho do poeta Orfeu, cujo corpo foi espalhado pelas coisas através do sopro das Eríneas. Depois esse corpo foi catado, aos pedaços, pelo seu filho, Museu.
Museu recompila, reordena e recupera a poesia das coisas3.
Transitar entre a lembrança e o esquecimento é decidir o que recordar. Tem coisa que vale a pena. Porque se passado, presente e futuro são uma coisa só, as histórias são muitas.
Até a próxima!
Gagnebin, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2021.
Depois de dois meses na neve, Fernando Parrado e Roberto Canessa, dois sobreviventes do voo dos Andes de 1972, caminharam dez dias em busca de resgate. A decisão foi tomada após o fim do mês de novembro, quando a neve estava começando a derreter. Eles tinham formado uma sociedade para sobreviver e essa não era a primeira expedição em busca de resgate. Parrado havia perdido a mãe e irmã no acidente e entre os destroços eles encontraram dois pares de um sapatinho vermelho. Todas as vezes em que um grupo ia em busca de resgate, levava um sapatinho com a promessa de juntar o par novamente na sociedade. O sapato vermelho era um amuleto. E estava com Fernando Parrado e Roberto Canessa quando eles se separaram do grupo no dia 12 de dezembro. Caminharam ao longo de dez dias, escalaram e desceram uma montanha, quando encontraram um trabalhador na margem oposta de um riacho. Era Sergio Catalán. Parrado e Canessa faziam sinais e gritavam, mas não se ouvia nada. Até que Catalán saiu em busca de papel e lápis, amarrou a uma pedra e jogou para eles. Dois dias depois eles conseguiram ser resgatados.
CURY, Marilia Xavier. Museu, filho de Orfeu. In: VIII Encontro Regional do ICOFOM LAM: Museologia, Filosofia e Identidade na América Latina e Caribe. Coro, Venezuela, 1999, p. 50- 55
é inevitável observar que o tempo não é linear - você: "eu vivo de passado, aliás nunca nem sai da minha infância e estou aqui criando dois seres humanos tendo em mente sempre o futuro delas. Diria até mais, só se anda para frente se vivermos de passado"; gabriel garcia marquez: "e mais uma vez estremeceu com a comprovação de que o tempo não passava, mas girava em círculo". apaixonada por seu texto!