Impressões
Língua é aquele órgão relacionado ao paladar capaz de fazer milagres porque fala mesmo quando não sai voz. Esse é um texto sobre arquitetura, mas preciso te confessar que isso quer dizer que esse também é um texto sobre desejo e vitalidade criativa. Aliás, muito em breve, diria que no tempo de 1447 palavras, vais descobrir, que sendo um texto sobre arquitetura e sobre língua, é também um texto sobre você. E sobre Eros.
Fiz trinta e seis anos no último dia três e estou provando pela primeira vez a fruta Pequi em um restaurante em Cuiabá (Pequi é diferente do Piquiá, esse último já conhecido desta paraense aqui). Viajei a trabalho e sendo mãe, sofri para sair de casa e passar a primeira noite longe. Segundo parágrafo, segunda confissão: sofri até o tempo de sentir o sol na janela do avião batendo no meu rosto. Abrir espaço para o novo é aceitar que Eros é sempre um convite à criação e à entrega. Que o diga esse texto que surgiu inesperadamente, hoje. A seguir te contarei algumas vantagens de perceber Eros. Vamos começar com a arquitetura (mas em breve voltaremos à língua!).
Alberto Pérez-Gómez1, mexicano, historiador e teórico da arquitetura, Professor na McGill University e conhecido por seu trabalho sobre a relação entre arquitetura e percepção, vai nos dizer que talvez seja óbvio pensar que o desejo humano moldou o ambiente construído muito mais do que a ideia de organização e abrigo espacial. Por exemplo, edifícios monumentais foram construídos a partir de necessidades espirituais e religiosas, as quais hoje não fazem mais sentido, como as pirâmides do Egito e as catedrais góticas. No presente, nosso desejo de vivenciar essas arquiteturas é outro. Afinal, se a forma não acompanha a função, ela acompanha a memória. Precisamos dos nossos testemunhos do passado porque eles, de alguma maneira, ajudam a criar a percepção de quem somos enquanto espécie. A arquitetura ajuda a preencher nossas faltas e a capturar nossos desejos.
Nesse contexto, Pérez-Gómez também salienta que, ao longo das nossas vidas, buscamos constantemente por algo que está faltando e que pode nos completar. Isso inclui tanto a presença física de alguém quanto a experiência de arte e arquitetura. E o que isso significa, digamos, arquitetonicamente, falando?
A partir de Eros, podemos pensar a arquitetura como algo que provoca fascínio e envolve o corpo — não apenas em sua utilidade, mas em sua capacidade de despertar desejo, intimidade e até transgressão. Mas, se por um lado, Pérez-Gómez critica a separação entre ética e estética que dominou a arquitetura moderna, defendendo que os edifícios não devem ser apenas eficientes, mas também carregados de sentido, Beatriz Colomina2, arquiteta espanhola e professora na Universidade de Princeton, explora como a arquitetura moderna flerta com o voyeurismo e a exposição do corpo. Colomina nos mostra que a modernidade, com suas superfícies de vidro e sua obsessão pela transparência, criou uma nova forma de olhar: uma arquitetura que não apenas abriga, mas também expõe.
Eu sei, querido leitor, estamos falando de coisas difíceis e para piorar, veja só mais uma camada de complexidade, esta dita por mim: Lina Bo Bardi, por outro lado, nos faz lembrar que mesmo a arquitetura moderna pode ser quentinha, convidativa e imprevisível. Isso porque parece que Lina desafiou um pouco a rigidez modernista ao incorporar o inesperado e o lúdico. Parece contraditório a você? Talvez sejam suas impressões, querido leitor.
Veja o SESC Pompéia, em São Paulo: dos recortes inusitados para as janelas, ao mobiliário de madeira e aos formatos orgânicos que se misturam ao partido arquitetônico geométrico, é possível vermos um acolhimento, uma espécie de contraponto que torna a arquitetura mais fluída. Olhem com carinho e dá para perceber que a edificação cria uma experiência sensorial acolhedora, diferente da frieza de muitos edifícios modernistas. Isso se dá porque além da materialidade bruta, há a escala humana, os espaços de encontro e o modo como a arquitetura permite um uso espontâneo. Não é um prédio que impõe um comportamento rígido, mas que convida ao convívio, ao descanso, ao lazer. Arquitetura quentinha que fala?

Não é tão fácil, mas sim, é possível ver como a arquitetura também pode falar. Inclusive, a relação entre Eros e arquitetura pode ser pensada a partir da nossa capacidade de comunicação e sobretudo, de conexão. Pérez-Gómez observa que vários animais possuem uma capacidade de comunicação incrível. Os cupins, por exemplo, conseguem construir ninhos perfeitamente simétricos mesmo estando separados por placas de 5 cm. Nós, humanos, diante do mesmo problema, provavelmente construiríamos estruturas distintas, isso se não falhássemos ou se não construíssemos uma maneira de romper a placa e criar uma comunidade política para decidir como fazer os ninhos (e mesmo assim fazer sempre diferente!). Tudo isso para te dizer que a essa capacidade os gregos chamaram de poiesis: a habilidade humana de criar algo que vai além da simples sobrevivência, que envolve conexão, emoção, significado e experiência sensível. Queremos mais do que habitar espaços. Queremos sentir. Agora vamos voltar à língua.

Exposições
Viram como a arquitetura é uma caixinha de surpresas? Mesmo a moderna, que almejava a universalidade e a transparência, revela muitas camadas de significado. Afinal, arquitetura não é apenas um jogo de volumes sob a luz: ela também é textura, som, temperatura, sombra. Ela é sentida antes de ser pensada.
Tipo a língua.
A língua percebe antes do pensamento, sente antes da palavra. Ela prova, toca, molda sons e significados. Como um gosto que sentimos na boca antes de saber seu nome, a língua é como a arquitetura: se revela primeiro na experiência sensorial.
Sim, isso mesmo, a arquitetura não é apenas matéria, mas também linguagem, uma estrutura que influencia a forma como pensamos e sentimos. Agora vejam, Lenora de Barros, artista brasileira, explorou esse atravessamento entre corpo e linguagem na exposição Minha Língua, que aconteceu na Pinacotena de São Paulo, em 2023. Com Lenora, lembramos que a boca não é só o lugar da fala, mas também do toque e do desejo. Suas obras mostram que a língua, seja como músculo, seja como um sistema de signos, é um campo de sensações. O que me faz pensar: não é a arquitetura também uma língua que fala sem palavras? Que cria sensações e experiências? Não é o espaço um texto que lemos com a pele?
Juhanni Pallasma3, arquiteto finlandês, que muito escreveu sobre fenomenologia e essências arquitetônicas, reforça a ideia de que a arquitetura não é apenas visual; ela envolve o tato, a audição, o olfato. A arquitetura…..não é apenas um abrigo ou um desenho no espaço, mas uma extensão do corpo e dos sentidos. Sentimos a textura do chão sob os pés, o frescor da sombra ao meio-dia, o som dos nossos passos. A arquitetura, metaforicamente, pode se imprimir em nós como um sabor na língua, como um cheiro que desperta lembranças, como um toque que arrepia a pele. Um convite à imaginação que surge do… desejo. E esse mesmo desejo alcança a imaginação e ativa o presente vivido, que é o tempo de Eros, querido leitor. Agora me diga, que gosto preferes? Doce ou amargo? Faça sua escolha, mas lembre-se: tudo é uma questão de impressão.
Ilusões
Da impressão que tive ao provar hoje o Pequi, posso afirmar que seu gosto é intenso, e parece quase uma surpresa difícil de classificar. Como certas arquiteturas que desafiam expectativas e nos fazem reconsiderar o que acreditávamos conhecer (lembram do SESC Pompéia?). As certezas são apenas ilusões.
Mas vale dizer que a ilusão nem sempre é engano. Como a ilusão de liberdade. Hoje lembrei que o sol que bate no rosto na janela do avião é diferente quando se viaja sozinha. Acho que tinha esquecido disso. Ando feliz com coisas que nunca fiz e, nossa, vou confessar: que delícia é ter novas experiências, algo que te impulsiona. Como um paladar que a língua encontra antes de devorar algo. Desejar é muito inspirador.
Esse texto chega ao fim e vou te lembrar que ele é sobre língua e sobre arquitetura, mas é também sobre você. Sim, você. Sem você, não há arquitetura, não há experiência do espaço. Juhani Pallasmaa diz que a arquitetura habita a memória antes mesmo de habitarmos o espaço. Já eu te digo que hoje provei Pequi e gostei. Porque o gosto, como a arquitetura, também pode ser uma descoberta. Minhas filhas acabaram de fazer três anos e vou ficar pela primeira vez longe três dias. A vida é esse eterno procurar sentido. Esse contínuo movimento que nunca para. Como a língua. A minha e a sua.
Volto para você depois do carnaval. Até lá, não esqueça: o desejo é sempre um convite, não é?
Até a próxima!
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Esse é um texto inesperado e impulsivo, escrito hoje mesmo, nesse domingo. Ele rompe com minha programação e serve para eu me lembrar que ideias não podem ser planejadas….mas podem ser vividas se abrimos espaços para elas. Em breve, retorno aqui com um ciclo novo e uma proposta para você, querido leitor. Vamos juntos? Se quiser me escreva!
Alberto Pérez-Goméz. Built upon Love. Architectural longing after ethics and aesthetics. London, 2006.
Beatriz Colomina. Privacy and Publicity: Modern Architecture as Mass Media. Cambridge, MIT Press, 1994.
Pallasmaa, Juhani. A imagem corporificada – Imaginação e Imaginário na Arquitetura. Porto Alegre: Bookman, 2013.