Vamos situar você leitor nessa minha vida alternativa à crítica formal e te dizer que não acredito na autonomia da arquitetura e nem da arte. Sempre lembro que os antropólogos não estudam as aldeias, mas estudam nas aldeias. Aprendi antropologia interpretativa com Clifford Geertz, fenomenologia com Juhani Palasmaa e essas coisas ficaram, se alojaram na minha cabeça e cá estamos: vou te falar de Pop Art, surrealismo e arquitetura, mas não te prometo colagens da Marilyn Monroe em banheiros ou repetições da Coca-Cola em papéis de parede, tampouco relógios do Salvador Dali em quadros acima de sofás em formato de boca. Sair da neura do conhecimento super específico foi a melhor coisa que me aconteceu. Vou te contar o porquê.
Mas antes de continuar, veja o que é a crítica tradicional e o que você encontrará aqui
Em essência, o papel da crítica no campo cultural é cruzar teoria e prática, analisando o contexto de cada obra e tornando essa relação compreensível para o público não especializado. De maneira geral, a crítica analisa as formas e buscar entender o que está por trás e se, por um lado pode ser extremamente descritiva, por outro, meus amigos, não é fácil descrever com clareza os fenômenos. Apesar desses méritos e dessas dificuldades, a crítica tem atingido um grupo de pessoas muito específico. E isso me fez pensar nos porquês. E é aqui, desse lugar, que eu escrevo.
Escrevo e falo da arquitetura como crônica para conseguir sentir emoção com um objeto da mesma maneira que sinto com uma música. Escrevo porque estou sentada em um café e está tocando Here Without You e estou emocionada, lembrando dos anos 2000 ao mesmo tempo em que me deu saudades das minhas filhas (eu sai por 3h para trabalhar nesse café, mães full time entendem essa contradição). Acho que a emoção dessa música está relacionada a minha memória e às conexões que meu cérebro faz. Talvez eu esteja na profissão errada, mas a verdade é que nenhuma obra de arte ou arquitetura me emociona se ela não me fizer pensar em outras coisas.
E se você também tem dificuldade com essa tal fruição estética que dizem por ai, vai concordar comigo: queremos emoção, histórias e fofoca para fazer com que essas coisas que apreciamos visualmente façam algum sentido na nossa vida. É isso que eu faço aqui nesse texto, te conto um pouco de comunicação, mídia, história da arte e arquitetura contemporânea de uma maneira não convencional e não formal.
“Ah, mas pra ser crítico é só saber olhar e observar com atenção?” Errado. Não basta saber olhar. Para ser crítico, é preciso saber comunicar. Como a Pop Art soube fazer.
A Pop Art que eu gosto é mais contraditória, política e sutil do que ver repetições coloridas do Andy Warhol em painéis por ai. E o surrealismo tem mais a ver com a subjetividade dos sonhos do que com a representação deles. Não vejo o Museu Guggenheim de Bilbão de Frank Gehry como surrealista, apenas como desconstrutivista (e verdade seja dita, o surrealismo nasceu em oposição à abstração e o museu tem formas claramente abstratas, até hoje não entendo essa relação que dizem por aí). Voltemos ao texto: os pedaços das coisas que fazem sentido moram nas sutilezas. E se você não rolou os olhos para cima agora, pode continuar lendo.
Vamos ver algumas obras da arquiteta Emanuella Wojcikiewicz. Mas antes, quero dizer que a própria Manuela não enquadra suas obras em nenhum estilo. Eu vejo surrealismo nelas e Pop Art, mas talvez seja apenas porque eu assim quero enxergar a vida, sempre em sonhos e na contradição.
Capturar a lua no horizonte, sentar na beira das nuvens [Manuela Wojcikiewicz].
A arquitetura contemporânea da Manu
Para Manu (como quase todo mundo, gosto da sensação de intimidade) é preciso liberdade. Projetar para o outro é algo que demanda muita liberdade de espírito. Parece óbvio que o projeto é sempre para o outro, mas em um mundo de tantos egos e estilos, tenho que te dizer que conhecer o outro, na arquitetura, é coisa rara. Manu conhece. Ela me diz que projeta para melhorar a existência das pessoas, criando uma relação não ordinária entre ser humano e espaço que leve a gente a se sentir bonito e empoderado dentro desses ambientes. Manu tem experiência em projetar espaços que fogem da banalidade da rotina, do espaço doméstico e buscam conforto na coletividade da experiência humana.
Visitei obras projetadas pela arquiteta, entre elas a Galeria Lama, no centro de Florianópolis. Lá tem um restaurante e bar, mas também tem venda de roupas, uma galeria de arte e um espaço multiuso que funciona para lançamento de livros, oficinas, mini cursos ou outras atividades nas quais o intuito seja juntar pessoas para conversar.
Sabemos que as pessoas estão acostumadas a habitar seus lares, a se sentir acolhidas dentro do conforto da ideia de casa. Mas a proposta dos espaços da Manu é que você possa sentir isso também dentro de um bar, de um restaurante ou de um quiosque de drinks, lugares tão marcados na nossa sociedade como espaços de aparência, ego e poder. Manu nos diz que você pode ser você, com todas as suas características, mesmo fora do seu abrigo, do seu casulo, do seu lar. E como ela fez isso na Galeria Lama? Projetando um lugar que possui atividades distintas, mas que você sente clareza para se movimentar e visualizar todos os componentes do espaço. De alguma maneira, parece que Manu quer lembrar que a vida não é só pagar boleto, também pode ter diversão. Felizmente.
Construo sempre espaços onde o racismo, machismo e homofobia serão sempre excluídos com força. O desconhecido gera medo, então faço tudo o que posso para que o medo não seja escudo para o incompreensível [Manuela Wojcikiewicz, em breve entrevista com esta autora].
O que eu gosto da Galeria Lama é que ela se conecta com a rua e tem uma dualidade interessante, porque você está dentro de um bar de caráter jovem e agitado, mas não é tão escuro devido à claridade da rua e à conexão com o centro leste de Floripa. A arte exposta na Galeria Lama está em um lugar de comunicação quase horizontal com o usuário do espaço e parece nos dizer “olha, eu estou aqui, se você quiser me olhar vai ser bacana, mas tá tudo bem preferir beber teu drink virando os olhos para mim”. Sem status, sem aparência, sem ego. Na Galeria Lama a gente lembra que se a arte é uma escolha, a arquitetura não é. Você precisa dela para viver em sociedade. E através dela pode habitar - no sentido filosófico - não só a sua casa, mas espaços coletivos também.
Comunicação, mídias e Pop art
A arquitetura de Manu luta contra a superficialidade, contra a aparência que imita ser algo que não se é, sendo também ela própria midiática. Ela usa o instagrão a seu favor. E sabe usar as cores neons, os textos e os temas da vida cotidiana de uma maneira poética, como uma escada que serve para Capturar a lua no horizonte, sentar na beira das nuvens. E quem também usou a mídia a seu favor foi o publicitário mais famoso do século XX, Andy Warhol. Ele fez isso buscando uma coisa não ordinária, mas que também fosse popular e engajada na cultura de massa. Latas de sopa Campbell não só deu a Andy o lugar de artista, mas definiu a Pop Art e sua obsessão pela produção em massa e cultura do consumo. Mas, em uma dimensão social e política, assim como Manu, ele lutou contra a superficialidade do mundo das artes. Como? Abraçando a mídia. Afinal, o que importa mesmo é a narrativa. E a comunicação dessa narrativa para o mundo ocorre pela mídia.
As mídias não são as vilãs, mas começamos a afundar com elas na modernidade. Não só porque tudo é efêmero, mas porque até sonhos e desejos se tornaram consumo nesse mundo midiático. Tudo está a venda. Na internet as pessoas prometem te transformar em algo inacreditável, mediante um pix para um curso. Não se vendem mais produtos, mas “autoridades”. Não se vendem mais casas, mas sonhos. Os arquitetos dizem que não projetam mais espaços, mas que entregam histórias. Tudo, tudo, tudo mesmo, é uma narrativa.
E dentro dessa narrativa que vivemos, o problema não são as mídias, mas a passividade com que vivemos nossas vidas dentro dessas mídias (e fora delas). Todos sabemos que estamos nos tornando iguais. O espaço que eu estou agora, da minha casa, é provavelmente igual ao seu que usa essa rede social na qual eu escrevo (é claro que uso meus livros como enfeite e minha planta jibóia está caindo da prateleira branca atrás de mim). E em meio a essa homogeneidade, os espaços de Manu ainda me surpreendem. Me lembram que ainda podemos sonhar e trazer nossos sonhos para a realidade, como o surrealismo nos mostrou. Também me lembram que sim, somos todos iguais e vivemos nesse mundo midiático, de luzes e telas, mas também somos diferentes e podemos ver beleza e nos sentir únicos seguindo nossas vidas de robôs e formigas operárias.
Se você ficou até aqui, entendeu que a história da arte e da arquitetura é uma construção não estática. Sabe um fichário de páginas soltas? Estou obcecada pela minha agenda, 6 anéis, formato a6, ela não intimida e te convida a preencher sem pretensão as folhas pequenas. Escrever e depois mudar a ordem. Juntar pedaços. Estamos no meio de agosto e eu já preenchi a agenda que era pro ano todo. O que parecia menos espaços para escrever se transformou em muitas palavras. No fim, as coisas não são sobre formas, mas as formas nos ajudam a ver o que realmente importa, como na arquitetura de Manu. Sonhar e não ter medo. Nem de escrever, nem de viver.
Até a próxima!
❤️❤️
Obrigada por esse texto e por me apresentar a Manu.