É como gostar de pimenta e sentir prazer na sede que se aloja. Ao mesmo tempo em que se controla aquela vontade de comer mais que a ardência causa. Fome e saciedade. Anne Carson explorou bem isso ao trabalhar o conceito de Eros na filosofia e literatura grega1. E como isso vai chegar em buracos, arte e arquitetura? Bem, eu vou te contar.

Um buraco revela, metaforicamente, quando tudo era nada. É a presença da falta. Uma abertura específica em algo sólido. Se por um lado, é diferente da ideia de vazio, por outro, compartilha do mesmo conceito: podemos habitar não apenas o espaço físico, mas também o espaço do invisível, do possível. Os buracos nos permitem lembrar que nos construímos entre o material e o imaterial, entre o presente e o que ainda está por vir. Tantos futuros quantos passados houver.
Mas nós arquitetos, quando vamos criar algo, muitas vezes nos enganamos e imaginamos espaços vazios a serem preenchidos. No entanto, o vazio, na realidade concreta, não existe. Nem um terreno desocupado em uma cidade é vazio. Não só porque ele contém informações e diretrizes sobre como poder ser utilizado, mas porquê ele ocupa um lugar entre o céu e a terra. Esse lugar tem cheiros, cores, sensações, história. Tem passado, presente e futuro. A única constante dele é o tempo. Nesse sentido ele tem muitas conexões simbólicas com a arquitetura. Eu sei, talvez pareça um paradoxo, mas a arquitetura é o espaço do vazio2.
Se diz que a arte é o imaterial, a escultura é o volume, e a arquitetura, o espaço. Nesta última convive a tensão e a dualidade entre o que está visível e o que está invisível, entre a solidez das formas e o vazio de suas estruturas. Pois se arquitetura é forma materializada, é no espaço vazio que a vida acontece, é no vazio que nossos corpos se movem. Ao representar, fisicamente, a falta da matéria, o vazio abre espaço para que a vida seja possível. E é nesse buraco da arquitetura, na presença da falta de algo, que habitamos. Como Eros.
Eros é uma energia que nos movimenta em direção ao outro. Anne Carson nos lembra que queremos algo porque não o temos, quando o temos, ele nos escapa. Todos os nossos desejos são contraditórios. Eros é falta. Safo3 inicia com a doçura da maça e termina em fome infinita, também salienta Anne. Aquilo que desejamos parece sempre escapar. Tem buracos que nunca se preenchem.
Eros assim como a arquitetura, é uma experiência de ausência tanto quanto de presença. Tudo se faz por contradição. Lembrem que arquitetura é solidez, mas é também vazio. É construção, mas também pode, às vezes, ser arte. Quando assume esse lugar, ela liga a terra ao céu, abre mundos, como uma mensageira. Guardiã que conecta o terreno ao divino. E vejam só, há uma noite no ano em que os limites entre os mundos, o real e o imaginário, se tornam mais permeáveis. Nascido como o festival chamado Samhain que marcava o fim do verão e o início do inverno na antiga Irlanda e Escócia, a festa que nos assombra e nos atrai tem se tornado cada vez mais popular no Brasil. Na lenda celta, o dia 31 de outubro é uma brecha, um buraco, que se abre e liga o que queremos ao que tememos. Se fantasiar no Samhain tinha como objetivo se esconder dos espíritos, mas também era sobre se transformar e se aproximar do desconhecido. Aquilo que seduz e dá medo. Como Eros. Entramos em outro tema e nele também está o deus do amor, a força criadora. Eros é um verbo. Agora, vamos voltar ao buraco.

Cada edificação começa com um buraco na terra. E se ergue, se construindo nesse ciclo de presença e ausência, tal qual Eros opera. Ele é o espaço entre o amante e o amado, entre o que é e o que pode ser. Eros, vejam só, é o próprio buraco que simboliza a criação. Não só arquitetônica, mas de tudo que virá a preenche-lo. Sua força de atração impulsiona a criação de novos seres e coisas, fazendo o mundo funcionar. Eros é a força que puxa tudo para si e nos ensina sobre limites e fronteiras. Mas, nesse processo de criação, partes também são engolidas, afinal, a contradição é uma constante. Pois quando eu desejo você, uma parte de mim vai embora. Um buraco está sendo roído em [meus] órgãos vitais, diz Safo4,- assim nos escreve, sabiamente, Anne.
Anne Carson, na verdade, nos escreve muito mais, como por exemplo, a noção de que quando estamos apaixonados entendemos a pessoa amada como complemento em uma espécie de eu alargado, quando na verdade, não somos nem um eu inteiro5. Carregamos nossos buracos a todo tempo. Anne também discute o amor e o desejo, na maneira como o Belo e o Amor se entrelaçam. Eros é tanto atração quanto sofrimento. Amor, visível, invisível, rituais, arquitetura, arte e….buracos, tudo isso faz parte da força criadora que é Eros. Anne diz que:
se acompanharmos a trajetória de Eros, encontraremos consistentemente esse mesmo caminho: ele se move de quem ama em direção à pessoa amada, depois ricocheteia de volta a quem ama e ao buraco que existe em quem ama, que antes tinha passado despercebido. Quem é o verdadeiro sujeito da maioria dos poemas de amor? Não é a pessoa amada. É aquele buraco6.
Eros, esse…doce-amargo. É sexta-feira e o dia das bruxas se aproxima, aquele dia mágico em que, supostamente, o mundo material se funde ao espiritual. Uma fenda que se abre, metaforicamente, no espaço-tempo. Aproveite para lembrar que os seus próprios buracos podem nunca serem preenchidos completamente, mas é a presença do vazio que mantém o desejo vivo. Fome e saciedade. Eros nasce do buraco, da falta. Mas lembrem, Eros se movimenta. E por isso mesmo, nos impulsiona. Happy halloween, querido leitor.
Até a próxima!
Carson, Anne. Eros, o doce-amargo: Um ensaio (Portuguese Edition). Bazar do Tempo. Edição do Kindle.
Esse conceito tem sido explorado por muitos autores, entre eles, um dos mais famosos, o italiano Bruno Zevi em seu livro Saber ver a arquitetura, publicado em 1948.
Safo foi uma poetisa da Grécia Antiga que escreveu principalmente poemas líricos, destinados à música, com temas que exploravam o amor, o desejo e as relações humanas, especialmente entre mulheres.
Carson, Anne. Eros, o doce-amargo: Um ensaio (Portuguese Edition) (p. 59). Bazar do Tempo. Edição do Kindle.
No amor, não é incomum experimentar esse senso elevado da própria personalidade (“Sou mais eu mesmo agora!”, sente quem ama) e se alegrar com isso. Carson, Anne. Eros, o doce-amargo: Um ensaio (Portuguese Edition) (p. 67). Bazar do Tempo. Edição do Kindle.
Carson, Anne. Eros, o doce-amargo: Um ensaio (Portuguese Edition) (pp. 55-56). Bazar do Tempo. Edição do Kindle.
Queridos leitores, vou aproveitar e colocar os textos que publico em outras plataformas sempre nesse espaço ao final. Semana passada, falei de um futuro na arquitetura que mora no nosso passado infantil. Foi dia das crianças e eu escrevi sobre padrões estéticos. Vem ler aqui ó: https://arqsc.com.br/ha-um-futuro-na-arquitetura-que-mora-no-nosso-passado/.
OBS: Respondam me contando suas percepções sobre Eros, buracos e arquitetura. Lembrem, só aparece para mim seus comentários respondidos por e-mail. E eu adoro ouvir histórias. Um beijo!
Somos inteiros E com buracos. Sem falta, não há desejo. Eu tô amando a leitura desse livro, mas tá em pausa faz uns meses. Anne é uma diva né? Adorei seu texto… deixemos os espaços pra vida circular. Beijocas
Que delícia de texto, Luciana!
Taí um lugar que não imaginaria pensar o Eros: a arquitetura e seus buracos. 😊