Prólogo
Todos os heróis tem um caminho mas não um plano, pensou Ariadne.
Em seguida entregou o fio de novelo a Teseu, prestes a entrar no labirinto. Sabia ela planejar ou sabia ela seguir sua intuição e coragem? Provavelmente ambas as coisas e aqui nesse texto vou te contar a história de Ariadne em um ensaio sobre arquitetura e seus limites com a arte. Mas antes, assim como a Esfinge, eu te trago um enigma a ser decifrado.
O que é, o que é
Em alguns lugares é invisível e em outros, secreto,
Esperado com risos, mas nem sempre afetos… porque ao me revelar
Posso causar alegria e decepção (e muitas vezes, te deixo na mão!)
Lembre, minha festa é no fim, quando o ano já cansa,
Quem sou eu nessa dança?
A newsletter de hoje é especial e inicia não só o verão, mas também um projeto novo e nela eu te escrevo a resposta do enigma acima (não é o papai noel!). Começarei te contando que hoje teremos um formato diferente: uma carta para uma pessoa. Será que é para você? Está confuso? Quer saber o que isso tem a ver com labirintos, significado e arquitetura? Vem que eu te conto. Ou melhor: decifra-me, querido leitor, ou te devoro :)
Resposta do enigma
Florianópolis, 20 de dezembro de 2024.
Querida amiga secreta,
Hoje a meia noite será verão. Sei que tu estás lembrando porque quando iniciou a primavera, escreveste, não por acaso, que tudo que é sólido desmancha no ar. Afinal, como lembraste, é assim que que se abre um lugar, uma brecha no espaço. E é no espaço que vemos a luz. As vezes não ter um teto sobre a nossa cabeça pode ser desafiador, mas é olhando para o céu que podemos nos orientar. Eu sei, chega o fim do ano e a gente sempre busca uma referência que nos indique o caminho a seguir, mas nem sempre temos uma bússola nos guiando (ou uma seta de norte nos projetos!). As vezes são as dúvidas que nos impulsionam. Porque se a arte é uma pergunta, querida amiga, o que é arquitetura, também é.
Estamos iniciando 2025 e ainda não sabemos definir arquitetura. É abrigo? Tem que ter um teto? Tem que te orientar no espaço? Pode ser apenas construção? Ou apenas experimentação poética e sensorial? Muitas perguntas. Aqui vai então uma resposta que eu aprendi contigo: tudo é caminho. E vou completar te dizendo: arquitetura também.

A primeira vez que conheci a história de Ariadne e pensei um pouco mais sobre labirintos e arquitetura como desorientação, foi em 2020, assistindo Dark. Cinco anos se passaram e recentemente voltei ao tema ao ler uma tese de doutorado. A ideia de labirinto é bastante conhecida como uma metáfora para a relação entre controle e liberdade, mas pouco explorada como projeto, construção e experiência arquitetônica.
É a ambiguidade do labirinto que me encanta. Não só porque a neblina torna as coisas maravilhosas, mas porque ter certeza das incertezas traz paz ao coração dos ansiosos como eu. O labirinto enquanto metáfora é uma narrativa em si e enquanto projeto arquitetônico contém muitas camadas de significados. Ele nos desafia a pensar a arquitetura não apenas como organização do espaço, mas como experiência viva, emocional, quase psicológica. Ao entrar em um labirinto, não é só o espaço que, de alguma maneira, parece se desconstruir, é também o nosso senso de direção, a confiança nas escolhas e a nossa própria percepção do tempo. Tal como a arte, o labirinto te coloca em um lugar de decisão. Por isso mesmo, na contemporaneidade ele tem sido uma experiência arquitetônica, mas também artística:

Apesar do tema que te escrevo soar, digamos, sombrio, te lembro que hoje a meia noite será verão. Essa é a época das metas, tu sabes. Particularmente, apesar dos clichês, eu gosto de imaginar que é o momento de projetar a vida que vem a seguir. E veja, querida amiga secreta, isso tem tudo a ver com labirintos!
Porque a questão é que a vida não é muito programável e não raras as situações, ela é mais um labirinto no qual estamos presos. O curioso é que, segundo a mitologia grega, o primeiro projeto de arquitetura foi um labirinto. Construído por Dédalo para abrigar o Minotauro, ser com corpo de homem e cabeça de touro. Tal como a esfinge, as sereias, os centauros….essas criaturas que representam os monstros que os heróis enfrentam. No mito grego, logo aquilo que serve a organizar o espaço - a arquitetura - teve como primeiro projeto um lugar para se perder. Arquitetura pode ser abrigo, refúgio e orientação, mas também pode te desestabilizar e te desorientar. Tudo depende do significado.

A desorientação como principio de projeto foi explorada na tese de doutorado que eu li esse ano, de Francesco Perrota-Bosch, na qual ele fala do labirinto em seus aspectos históricos, simbólicos, narrativos e também projetuais. A tese toda é brilhante, maravilhosamente escrita e eu destaco aqui os labirintos do amor:
“Labirintos do Amor” é a terminologia que identifica boa parte dos labirintos compostos por espécies vegetais que foram uma moda arrebatadora nos projetos de paisagismo para castelos e ville europeus na Idade Moderna. Aristocratas ambicionavam ter, em seu jardim, um labirinto: o lugar para as brincadeiras de adultos, onde enamorados corriam um atrás do outro, provocando-se, aproximando-se e separando-se, tocando-se e afastando-se, para os encontros e para as fugas (Perrota Bosch, 2024, p. 147-148).

O amor é realmente um princípio criativo incrível. Aliás, foi por amor que Ariadne concebeu o plano para Teseu escapar do labirinto. A história é mais ou menos a seguinte: Minos, o rei de Creta, ordenou que Dédalo construísse o labirinto para abrigar o Minotauro que, estando preso, recebia periodicamente jovens atenienses para serem devorados por ele. Ninguém que entrava no labirinto saía vivo. Até que um dia, Teseu, filho do rei de Atenas, se ofereceu para entrar. Ao chegar em Creta conheceu Ariadne que, ao se apaixonar por ele, lhe entrega uma espada e um novelo de fio para que ele marcasse o caminho. Teseu mata Minotauro e sai vivo. Graças ao amor de Ariadne.
Nós duas, querida amiga, já escrevemos sobre o amor e compartilhamos nossas percepções sobre Eros na obra de Anne Carson1. Por isso, acho que vais concordar comigo que um labirinto como metáfora é mais do que um emaranhado de espaços estreitos: é um lugar que nos obriga a confrontar nossas limitações e nossos próprios monstros. Por isso mesmo eu acho que significa dizer que é como se apaixonar. Eros nos mostra que não temos controle. Afinal, entre se achar e se perder quem nos impulsiona a seguir adiante é a fome - algo que nós duas já escrevemos. Tu, querida amiga, dizendo que se entregar é confiar no desconhecido e eu escrevendo que é na presença da falta de algo, que habitamos.
Veja, muitos temas cruzam nossos caminhos. Em parte porque escreves muito sobre arte, mas também porque pareces entender que a vida acontece a partir dos recortes e significados que queremos dar. Se pensas assim, eu concordo contigo. Entraremos em 2025, mas há muito tempo já vivemos em um campo ampliado, cujos significados mudam a todo tempo. Aqui do futuro em que vivemos, os limites entre os campos não existem mais. Não a toa, a crítica de arte Rosalind Krauss se questionou no conhecido ensaio de 1979, os limites da escultura, entendendo que essa manifestação de arte já se estabelecia para além dos pedestais, mantendo relações diretas com as artes não escultóricas, como a arquitetura e o paisagismo2. Te lembra labirintos? Os significados estão a toda parte, não é?
Se durante milênios a escultura esteve atrelada à ideia de monumento com um significado específico, na modernidade ela se aproxima da arquitetura através do projeto modernista de abstração como linguagem formal. Isso quer dizer que antes o significado era fixo e as esculturas representavam eles por meio de figuras representativas (a isso chamamos de figuração). Mas com o conceito de modernismo vem junto a noção de representação abstrata e o significado passa a variar de acordo com a pessoa que vê (a isso chamamos de abstração).
Nesse jogo de figuração e abstração, vale a pena lembrar, mais uma vez, que a pergunta não é como, mas quando3. Os significados, os desejos na arquitetura, tudo muda. Clientes mudam de composição familiar, de sonhos. Projetar não é estabelecer respostas, mas estar aberto às perguntas. Lembra que Ariadne salvou Teseu, mas Teseu a abandonou.
E o que parecia um momento de desorientação se tornou uma porta aberta para a chegada do amor de Dionísio4. Querida amiga secreta, toda luz que não podemos ver, ela existe. Tu sabes. Os significados podem ser encontrados a todo instante. E convenhamos que Ariadne se deu bem, uma vida regada a vinho, ao amor e à festas me parece muito melhor do que viver resolvendo os problemas de homem (teseu aff não sabe nem sair de um labirinto sozinho).

Te escrevi essa carta, querida amiga secreta, porque vejo o quanto pareces gostar de mitologia grega. Escolhi como presente te contar de Ariadne, dos labirintos e do que pode significar o ato de projetar o espaço construído. Ao lembrar Ariadne, te convido a comemorar o amor, os recomeços, a inteligência e claro, os planos e projetos que tanto marcam o mês de dezembro. Afinal, estamos na época em que mais se fala de projetos. De arquitetura e da vida, porque em ambos é preciso ter muita imaginação para enfrentar o futuro que virá.
O primeiro quarto do século XX está encerrando e hoje a meia noite será verão. O solstício é dia que inicia a época mais quente do ano e o dia em que o sol atinge seu ponto mais alto no céu. Também historicamente marcado como um dia de rituais de celebração, festas, danças e farturas. Um dia para lembrar de recomeços, de Ariadne e de Dionísio, mas também um dia para afirmar que podemos trocar na arquitetura o eu pelo nós e para lembrar que se os significados mudam, nós também mudamos. Se orientar ou se perder é só uma questão de encontrar aquilo que te guia e que seta te aponta um norte a seguir. Como bem lembraste aqui, tudo é caminho. Mesmo dentro do labirinto.
Epílogo
Hoje a meia noite será verão. E lembro que ao falar da primavera, contaste sobre teu primeiro livro escrito. Um romance! Eu também estou iniciando novos ciclos e tenho um romance que mora na minha cabeça. Ano que vem vou entrar nesse labirinto e encontrar o significado, ou pelo menos encarar as feras. Porque se eu tenho aprendido com a Aurora5 que eu quero dançar com o outro, ao te ler, lembro que esse outro também sou eu. Afinal, os limites entre ficção e realidade são linhas tênues. Mas foi assim mesmo, com um fio delicado, que Ariadne tirou Teseu do labirinto. E hoje, ao celebrarmos o verão, quero te lembrar, querida amiga secreta, que com tanta riqueza por ai, você sabe exatamente onde está sua fração. E em 2025 eu quero ser como você e descobrir a minha. Feliz Natal!
Até a próxima!
Obs.1: Minha amiga secreta se chama Mia Sodré e escreve coisas belíssimas na sua newsletter Querido Clássico, onde ela explora o passado de maneira a iluminar o presente. Leiam e conheçam um pouco lá sobre mitologia, arte e literatura. Vocês vão gostar :)
Obs. 2: Esse texto é uma carta de natal e foi escrito como parte de uma troca de amigo secreto do grupo de Newsletter Brasil, organizado pela Paula. Feliz Natal meu povo, trocar figurinhas com vocês no grupo é bomdimais <3
Obs. 3: Essa newsletter entrará em pausa para dar espaço para que a Sara, a protagonista do meu livro, encontre sua voz e para que a Aurora possa ser livre e tenha tempo para desenvolver seus cursos e seu ateliê criativo em Floripa :) Em breve te escrevo para contar da newsletter Aurore-se, que vai nascer em 2025 para te trazer edições mensais com curadoria de arquitetura, um clube do livro arquitetônico e uma carta divertida and inteligente da Aurora. Já adianto que a Aurore-se vai ser o jeito de você apoiar uma Escola Livre de Arquitetura, Arte e Urbanismo, contribuindo para esse sonho coletivo se tornar realidade. E claro, também não vou me demorar a voltar aqui. Afinal, querido leitor, presa nesse labirinto que é viver… só escrever me salva. Portanto, até logo, continuem destruindo o patriarcado, fazendo exercícios e bebendo água, ok?
Obs. 4: Essa newsletter também foi escrita porque eu li e fiquei fascinada com a tese de Francesco Perotta-Bosch intitulada O que labirintos podem revelar sobre a arquitetura. Disponível aqui: https://repositorio.usp.br/result.php?filter[]=authorUSP.name:%22PERROTA%20BOSCH,%20FRANCESCO%20BRUNO%22
Carson, Anne. Eros, o doce-amargo: Um ensaio (Portuguese Edition) (pp. 55-56). Bazar do Tempo. Edição do Kindle.
Vidler, Anthony. O campo ampliado da arquitetura. In: O campo ampliado da arquitetura. Org: Krista Sykes. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
Quem leu meu livro, entendeu. :)
O mito grego nos conta que Ariadne foge de Creta com Teseu e é por ele abandonada enquanto dormia. Afrodite ao ver isso faz com que Dionísio a encontre e por ela se apaixone. Ao se casarem, Ariadne encontra o amor divino no deus do vinho (#chupateseu).
lu, que carta perfeita! exatamente o que eu precisava ler hoje - é quase verão, quase solstício, e o sol ilumina os caminhos do labirinto. perder-se também é encontrar novas possibilidades, e não há nada mais bonito do que viver sabendo que tudo é caminho, que há beleza naquilo que desconhecemos. a noite escura das sombras do labirinto também revela o desconhecido do que podemos nos tornar e de quem sempre fomos, mas não lembramos.
amei a tua escrita! e amo o mito de ariadne e dioniso (o querido dioniso é um dos meus objetos de pesquisa, inclusive), acho que ele dialoga muito com o não se deixar engolir pelo medo e dar um passo de cada vez, sabendo que o nosso destino não foge da gente.
feliz natal, querida! ♥
meu deus, que texto lindo!!! (já li duas vezes)